Proposta de exame para se tornar médico divide opiniões entre estudantes e profissionais da área da saúde, mas pesquisa mostra que 95% dos brasileiros aprovam a avaliação dos profissionais recém-formados
O número de cursos de medicina tem crescido de maneira exponencial. Segundo o portal Educa Cetrus, centro de educação e pesquisa médica no Brasil, em um intervalo de apenas 20 anos, o número de faculdades de medicina no país mais que triplicou, passando de 143 para 448 — um aumento superior a 200%. O alto número leva a um questionamento: como garantir que estudantes recém-formados estão aptos para atender pacientes?
Nesse cenário, surge a proposta de avaliar os recém-formados. A ideia ficou conhecida popularmente como “OAB da medicina”: um exame que avalia se o novo médico tem as habilidades necessárias para exercer o cargo, como raciocínio clínico, habilidades com ferramentas médicas, questões de comunicação e comunicação com o paciente.
O tema em discussão

A ideia tem adesão da população: encomendado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), um levantamento do Datafolha mostra que 96% dos brasileiros defendem a criação de prova obrigatória para médicos recém-formados. Segundo o coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM, Alcindo Cerci Neto, a comissão defende há algum tempo uma prova para adquirir o registro profissional: “Existe uma epidemia de profissionais que entram no mercado de trabalho e não conseguem fazer atendimentos básicos com qualidade. Queremos que a população, cada vez mais, tenha acesso a profissionais qualificados. Não estamos avaliando faculdades, mas, sim, médicos”.

A ideia, no entanto, divide opiniões. Para Mohamad Abou Wadi, membro da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), entidade que representa as instituições de ensino superior particular no Brasil, a criação de um exame terminal de proficiência não é necessária. “Já existe o Enamed, que cumpre a função de aferir a qualidade da formação médica com base nas diretrizes curriculares nacionais”, explicou. Ele se refere ao Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), avaliação criada pelo Ministério da Educação (MEC) para medir desempenho dos cursos de medicina no Brasil e unificar as matrizes de referência utilizadas na graduação.
Wadi acrescenta que o novo exame seria redundante, e um modelo de “OAB dos médicos” poderia gerar insegurança jurídica e custos adicionais. “O foco deve ser no fortalecimento do papel avaliador do MEC, que dispõe de instrumentos regulatórios e de sanção eficazes”, afirmou.”Este é o caminho mais eficaz.”
Entretanto, na avaliação de Cerci Neto, os exames são “completamente diferentes”. “O Enamed avalia cursos de medicina. É uma prova feita para alunos, de maneira teórica, que não mede todas as habilidades necessárias para ser um médico. A proposta para obter registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) é avaliar profissionais formados, atestando sua capacidade mínima de cuidar da população”, explicou.
O médico destacou, ainda, que o CRM “não quer ser MEC”, já que as avaliações seriam independentes. Uma faculdade pode ser bem avaliada pelo Ministério da Educação, mas o médico recém- -formado pode não passar pela prova de certificação e vice-versa. “Não somos contra o Enamed, somos favoráveis a qualquer modalidade de avaliação de cursos de medicina. São coisas separadas. A ideia é avaliar o médico recém- -formado, não a faculdade em que ele fez o curso”, esclareceu.
Visão dos estudantes
Para Thais Ingrid Alves, aluna de medicina na Universidade de Brasília (UnB), criar mais uma prova só aumenta a burocracia, a sobrecarga e a ansiedade nos estudantes, sem garantir a melhoria real na qualidade da assistência médica: “No decorrer do curso adquirimos habilidades que uma prova jamais poderia extrair. Os médicos são fiscalizados por órgãos oficiais (Conselho Federal de Medicina e Conselhos Regionais de Medicina). Esses conselhos cumprem os papéis de julgar infrações, aplicar sanções e fiscalizar a atividade na prática. Criar uma outra avaliação seria duplicar funções”.
A estudante defende que o exame é uma solução paliativa. “Acaba penalizando quem está se formando, sem atacar as verdadeiras causas da má formação médica no Brasil. O problema não é a ausência de uma prova, mas sim a expansão descontrolada dos cursos de medicina e a falta de fiscalização por parte do MEC”, destacou.
Já Samuel Beça, aluno do segundo semestre da Faculdade de Medicina da UnB destaca que um exame nacional de proficiência pode ser um mecanismo válido “desde que bem estruturado”. O estudante destaca o contexto atual, de expansão desordenada de cursos, e vê o exame como “parâmetro objetivo para assegurar um patamar mínimo de conhecimento, garantindo maior segurança para a sociedade que será atendida por esses novos profissionais”
Entretanto, ele também destaca que a medida não atacaria a raiz do problema: a má qualidade de alguns cursos. “O principal benefício é a qualificação do cuidado em saúde, uniformizando a qualidade dos egressos. O malefício reside em potencializar desigualdades, punindo o aluno por falhas institucionais e criando uma barreira financeira e psicológica adicional”, afirma.
Impactos
A medida gera uma série de efeitos para a comunidade médica, que também debate se o exame traria mais benefícios ou malefícios. Para Thais Ingrid, um novo exame não acrescenta ganho proporcional à formação, e gera o risco de empobrecer o ensino da saúde: “A experiência de outros exames, como o Exame de Ordem Unificado, mostra que faculdades tendem a se tornar ‘cursinhos para prova’, priorizando memorização e técnicas de teste em vez de habilidades essenciais”.
Além disso, a estudante salienta que a prova pode criar “barreiras financeiras”, já que envolveria taxas e cursinhos de preparação, favorecendo quem tem mais recursos. “Para piorar, pode atrasar a entrada de novos médicos no mercado, agravando a carência em regiões que sofrem com falta de profissionais no Sistema Único de Saúde (SUS)”, acrescentou.
Beça destaca a ambiguidade dos efeitos que a prova geraria: “Pode gerar um currículo orientado para a prova, o que é negativo. Por outro lado, pode estimular uma base técnica mais sólida e crítica, incentivando as instituições a revisarem suas grades curriculares para melhor preparar seus alunos, o que seria um ganho inegável”.
Em contraste, o presidente do CNM, Cerci Neto, defende que os impactos positivos superam questões adversas: “Um exame nacional para se tornar médico propõe avaliar se o recém-formado possui as habilidades básicas para atendimento, como comunicação, habilidades manuais e raciocínio clínico. Imagine você sendo atendido por um médico que nunca viu? Queremos garantir que esse profissional que lhe atende seja minimamente qualificado para tal”
O novo exame do MEC: Enamed
O Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed) é a mais recente modificação do MEC em cursos de medicina. Oficializado em abril de 2025, o exame unifica o Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, que mede o desempenho dos cursos) e a prova do Enare (Exame Nacional de Residência, para acesso aos programas de residência médica). A primeira aplicação da prova, gratuita e obrigatória para todos os concluintes de medicina, será em 19 de outubro.
A nota do Enamed vai ser utilizada como critério para programas de residência médica, e o Enade passou a ser anual. A novidade proposta é uma avaliação nacional para médicos recém-formados, para assegurar que estão aptos para desenvolver as funções de médico.
Diferenças essenciais
O Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é uma avaliação obrigatória para bacharéis em direito no Brasil que desejam exercer a advocacia, servindo para comprovar sua capacidade e conhecimentos. A ideia é trazer uma avaliação semelhante para o curso de medicina, a fim de garantir o exercício qualificado da profissão.
Mesmo que tenham idéias parecidas, as propostas de prova seriam muito diferentes. O médico Cerci Neto salienta que seria um exame de duas fases, divididas entre conhecimentos teóricos e práticos, para médicos recémformados. “40% do curso de medicina é prático. No atendimento de pacientes, não se pode avaliar um médico apenas pela capacidade teórica.”
Outros métodos
Para além de uma prova terminal, outros métodos são defendidos. Alves e Beça apontam uma combinação de fiscalização rigorosa e avaliação contínua: “A responsabilidade pela qualidade deve ser compartilhada, focando na avaliação institucional para fechar cursos deficitários, e não apenas na cobrança individual ao final da jornada”. afirma Samuel.
Alves menciona que a “violência simbólica” pode estar presente nesse tipo de avaliação. “Ela se apresenta como uma prova “pela segurança do paciente”, mas na prática reforça a exclusão do estudante, reforçando a desigualdade”. Cita os filósofos contractualistas Jean-Jacques Rousseau e Durkheim ao afirmar que a sociedade deve responsabilizar as instituições formadoras e o Estado, não apenas o indivíduo: “Transferir a responsabilidade para o estudante seria uma quebra do contrato social, pois pune a parte mais frágil (o graduando). Se a função da educação é preparar o indivíduo para viver em sociedade, a existência de maus profissionais não deve ser atribuída ao aluno, mas à falha da instituição educacional e do sistema regulador. A “OAB médica” é contrária à função pedagógica da educação, porque não corrige o processo, apenas pune o resultado”.
Passagem pelo Senado
Segundo o portal Agência Senado, o senador Marcos Pontes (PL-SP) apresentou projeto de lei para que o exercício da medicina no Brasil tenha como exigência a aprovação em exame de proficiência. Conforme o projeto, somente depois da prova os formados poderão obter registro no Conselho Regional de Medicina (CRM). A demanda, segundo Pontes, é das próprias entidades representativas da profissão, que apontam a proliferação indiscriminada de cursos no país e a má qualidade da formação.
Fonte: Correio Braziliense
Foto de capa: Artem Podrez