Brinquedos educativos, inteligência artificial no meio hospitalar e suplemento para animais são algumas das ideias que se tornaram realidade.
Se por anos as pesquisas de mestrado e doutorado sofriam com o estigma de focarem muito na teoria e pouco na prática, as instituições de ensino têm se engajado em ajudar que cada vez mais projetos saiam do papel. Mudanças legislativas e um afinamento maior entre mercado e academia têm feito surgir nas prateleiras produtos e serviços com embasamento científico.
O movimento conecta universidades, laboratórios, startups e empresas consolidadas, criando negócios baseados em ciência aplicada. Entre aplicações múltiplas da inteligência artificial (IA) e inovações para a área da saúde, as iniciativas abrangem diferentes campos de conhecimento, que se misturam no processo de pensar um novo empreendimento.
Prevenção ao erro no hospital
A partir de uma pesquisa de doutorado na Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o cientista de dados Henrique Dias criou a NoHarm, startup voltada à segurança do paciente e à redução de incidentes clínicos em hospitais. A pesquisa desenvolveu algoritmos de IA capazes de identificar padrões de erro em prescrições, prontuários e procedimentos médicos.
Durante o doutorado, Dias percebeu que os resultados não precisavam ficar restritos ao ambiente acadêmico. A possibilidade de aplicação direta em hospitais surgiu à medida que os testes de validação computacional começaram a apontar eficiência na prevenção de falhas.
— Nós buscamos por eventos adversos, que são algo de errado que aconteceu com o paciente e não está relacionado à doença dele. Por exemplo: tu entra num hospital com um problema cardíaco e quebra a perna porque caiu, ou tem um sangramento porque te deram o remédio errado. São incidentes 100% evitáveis que queremos trazer à luz, para que sejam criadas políticas e procedimentos que os evitem — conta o empreendedor.
Não é fácil: entre tirar da pesquisa e transformar em negócio tem uma distância monstruosa.
HENRIQUE DIAS
Com o apoio do Tecnopuc, a solução foi testada no Hospital São Lucas da PUCRS, permitindo o ajuste dos algoritmos a partir de situações reais. A experiência viabilizou a adaptação do software ao ambiente hospitalar, respeitando fluxos e protocolos clínicos. Depois da validação, a NoHarm estendeu o projeto para a Santa Casa de Porto Alegre.
A startup atua como uma organização sem fins lucrativos, oferecendo seu sistema de alerta automático a hospitais. São 150 estabelecimentos de ensino atendidos pelo serviço. No caso de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS), a oferta do programa é gratuita. Os algoritmos analisam prescrições, registros eletrônicos e prontuários e emitem alertas quando detectam padrões de risco, como dosagens incorretas ou combinações inadequadas de medicamentos.
Segundo Dias, o apoio da universidade e do ecossistema de inovação foi decisivo para transformar a pesquisa em solução prática:
— Todo o ecossistema do Tecnopuc nos ajudou a transformar a nossa pesquisa em negócio e encontrar o mercado, porque aqui a gente tem um hospital, então foi um espaço rico para poder validar a nossa solução. Não é fácil: entre tirar da pesquisa e transformar em negócio tem uma distância monstruosa. Mas aqui tem todas as trilhas de empreendedorismo pavimentadas — afirma o pesquisador.
A expectativa agora é expandir a ferramenta para outras instituições de saúde e desenvolver novos módulos baseados em IA para a gestão de risco clínico conforme o perfil do paciente.
Brinquedos para o aprendizado
A arquiteta e professora da Atitus Educação Andréa Quadrado Mussi transformou seu trabalho acadêmico em base para desenvolver a Missão Criativa, empresa que desenvolve brinquedos educativos, materiais pedagógicos e projetos de educação ambiental. O negócio surgiu a partir de pesquisas de mestrado e doutorado orientadas por ela, na área de arquitetura, urbanismo e educação.
A pesquisa foi crescendo e atingindo uma maturidade que permite uma relação mais direta com o que a sociedade realmente precisa.
ANDRÉA QUADRADO MUSSI
A iniciativa começou em 2017 com oficinas e protótipos feitos de papelão, criados a partir de estudos sobre brinquedos como recurso didático. Com a consolidação dos projetos acadêmicos e o envolvimento de alunos de graduação e pós-graduação, a empresa passou a desenvolver linhas de brinquedos pedagógicos, kits de apoio para clínicas de terapia infantil e outras soluções personalizadas.
— Essa aplicação prática depende muito de cada instituição e professor orientador. Eu sempre tive muito contato com a sociedade, então, se vejo um potencial na pesquisa para que ela se transforme em uma linha de negócio, já vou conduzindo o aluno para isso. No nosso grupo, a pesquisa foi crescendo e atingindo uma maturidade que permite uma relação mais direta com o que a sociedade realmente precisa — afirma Andréa.
Os produtos e serviços da empresa atendem tanto escolas públicas quanto privadas. A Missão Criativa também realiza projetos em parceria com empresas privadas e, recentemente, passou a investir no desenvolvimento de uma plataforma baseada em IA. A ferramenta permitirá a personalização de brinquedos e jogos conforme as preferências e necessidades específicas das crianças, incluindo aquelas com transtorno do espectro autista.
Andréa destaca que a possibilidade de usar a infraestrutura da universidade e de parques tecnológicos foi determinante para acelerar a aplicação prática das pesquisas:
— Temos laboratórios que podemos usar na universidade sem precisar criar uma indústria própria, o que tornaria tudo muito moroso e caro. (…) Tem uma base de pesquisa que surgiu e foi se aprimorando para chegar agora a gerar lucro. É um caminhar.
A docente defende que a universidade precisa estimular esse tipo de integração desde a graduação, com disciplinas voltadas para projetos práticos e programas de incentivo ao empreendedorismo. Isso fortalece o vínculo entre ensino, pesquisa e comunidade e dá viabilidade a soluções baseadas em conhecimento científico.
Produtos para animais
A farmacêutica Josiane Feijó criou a empresa Ignis Animal Science a partir de uma pesquisa realizada no seu pós-doutorado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A iniciativa foi estruturada no Laboratório de Desenvolvimento Galênico da instituição e desenvolve produtos farmacêuticos e nutricionais para uso veterinário. O primeiro foi o CalUp, suplemento nutricional para vacas leiteiras, desenvolvido durante a pesquisa acadêmica e validado com apoio do Pelotas Parque Tecnológico.
— Eu vejo o que tem no mercado e o que a vaca realmente precisa, porque muitos produtos que estão no mercado não testam se aquilo a que ele se propõe realmente é efetivo. Tem suplementos que, no conceito, têm um efeito, mas, na prática, agem de uma forma diferente. Esse é o diferencial de uma empresa unir pesquisa científica e desenvolvimento de produtos.
Em 2021, o CalUp se tornou o primeiro produto desenvolvido em uma pesquisa da UFPel a chegar às prateleiras para o consumidor, após ser patenteado e licenciado por meio de parceria entre a Ignis e a instituição. O suplemento busca solucionar a hipocalcemia, deficiência em cálcio encontrada em vacas no período em que estão em lactação. Conforme Josiane, o processo até a obtenção da patente foi árduo.
— Foi bem difícil. Levamos em torno de um ano e pouco para fazer o licenciamento. Eu chegava lá na pró-reitoria e perguntava “tá, mas como a gente faz para botar o produto no mercado?”, porque a universidade não pode ter lucro com ele. Nesse processo, eles aprenderam e eu aprendi também. Quando consegui, eu chorava de alegria — recorda.
Para Josiane, o ambiente do parque tecnológico foi determinante para validar o produto e construir a rede de contatos necessária para levar a solução ao mercado. Entretanto, ainda que a vontade de pesquisar e a de empreender sempre a tenham acompanhado, Josiane observa que o processo de se tornar uma empresária não foi fácil: exigiu uma “virada de chave” e um aprendizado prático que envolveu “erros e acertos”.
A pesquisadora precisou aprender sobre emissão de notas fiscais, impostos, negociação, distribuição e aspectos regulatórios, buscando o conhecimento de pessoas experientes e não tendo “vergonha” de perguntar.
Em 2024, a UFPel registrou número recorde de depósito de patentes, com 47 títulos de propriedade sobre invenções de pesquisadores vinculados à instituição. O número a deixou com o título de maior desenvolvedora de tecnologias do Sul do Brasil entre as universidades públicas, de acordo com ranking do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).
As condições
Para Luciano Reolon, vice-presidente acadêmico da Atitus, o “abismo” entre o que a academia está estudando e muitas vezes ensinando e aquilo que são as demandas que de fato o mercado está precisando é um dos principais gaps na educação como um todo.
— É um problema sistêmico que desemboca no stricto sensu (mestrado e doutorado acadêmicos), com uma grande produção muitas vezes de conhecimento que ele não chega de fato para a sociedade. Para mudar essa realidade, mudamos o nosso modelo acadêmico há dois anos e meio, com a premissa principal de uma conexão radical com o mercado — descreve.
Essa “conexão radical” se dá por meio de disciplinas obrigatórias de desafio e programas de mentoria para conectar teoria e prática. A instituição também instalou aceleradoras e incubadoras para novos projetos. Segundo o vice acadêmico, a articulação entre academia, setor produtivo e poder público é o maior obstáculo para a consolidação desses negócios.
— O grande desafio hoje não é nem tanto a questão da qualidade do que está sendo produzido, mas da capacidade de a gente conseguir articular e integrar esses diferentes vértices e conseguir com que a gente possa tangibilizar tudo aquilo que vem desenvolvendo. A instituição de ensino precisa cada vez mais estar aberta a receber os inputs de fora, e muitas vezes ela tende a ter uma dificuldade.
Flávia Fiorin, gestora executiva do Tecnopuc, aponta o ambiente favorável como decisivo:
— Conectar o desenvolvimento do conhecimento com demandas objetivas do mercado ou da sociedade, antes de tudo, é algo que a gente vê resultados incríveis — afirma.
Flávia vê potencial de aproveitamento de pesquisas para a criação de iniciativas em todas as áreas, mas aponta para algumas tendências:
— O que a gente vê com bastante intensidade é uma tecnologia como meio, mas desdobrando em diversas áreas de conhecimento. Uma outra área que produz e desenvolve uma série de propostas de negócio é o direito, que precisa se renovar enquanto processo, enquanto tecnologias aplicadas. Mas, sem dúvidas, onde a gente tem a maior densidade de projetos, de produto e novos negócios surgindo é na saúde.
Fonte: GZH
Foto de capa: Tara Winstead/pexels