Denúncias transcendem o exame e têm implicações para a educação nacional
As denúncias sobre a ingerência dos dirigentes do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), do MEC (Ministério da Educação) e da própria Presidência da República no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) são gravíssimas e sem precedentes em processos semelhantes. Exigem apuração rigorosa e imediata; a verdade precisa vir à tona como imperativo psicométrico, educacional, político e ético.
Se confirmadas, desqualificam por completo os dirigentes educacionais do governo federal, tanto pelo que revelam de desconhecimento, quanto pelo comprometimento dos protocolos de organização de exames com as finalidades que tem o Enem, além de outros aspectos. São denúncias que transcendem ao Enem; atingem-no, sim, mas têm implicações para a educação nacional, nos colocando questões de justiça e democracia.
O Enem reveste-se de importância por sua relevância para milhões de candidatos para os quais se caracteriza como um grande vestibular nacional, utilizado pela quase totalidade das universidades brasileiras.
Nessa caracterização repousa a preocupação psicométrica sobre o Enem, pois esses candidatos devem ser hierarquizados por suas notas que, por sua vez, devem depender única e exclusivamente de suas proficiências, isto é, daquilo que sabem com respeito às matrizes de referência do Enem, organizadas com base no currículo do ensino médio.
No entanto, caso os protocolos de elaboração de itens e de montagem das provas tenham sido violados, ou mesmo que tenham sido ameaçados, informações sigilosas potencialmente foram acessadas por pessoas que não tinham autorização para tanto. Só isso já configura um ataque à justiça e à democracia que deve permear a produção das notas dos candidatos. Sobre o sigilo do processo não pode pairar dúvidas, em hipótese alguma.
O Enem possui matrizes de referência nas quais estão delimitadas as áreas de conhecimento, suas habilidades e seus objetos de conhecimento, um documento público que professores e candidatos consultam para ensinar e estudar.
Depois, são selecionados publicamente profissionais que vão elaborar itens de múltipla escolha —as “questões”—, que, na sequência, serão submetidos a várias revisões para verificar se estão de acordo com as demandas de conteúdo e de forma, para então serem pré-testados a fim de se constatar se atendem às necessidades psicométricas fundamentais: ter apenas uma alternativa como gabarito e o dimensionamento de sua dificuldade.
Aprovados, passarão a compor o banco de itens, do qual serão escolhidos para compor as provas, que devem abarcar o conteúdo das matrizes, ainda que sem esgotá-las dado o limite de itens por prova, e serem de dificuldade variável.
Todo esse processo, que se estende à aplicação das provas, ao tratamento das respostas dos candidatos e à divulgação dos resultados, deve ser cercado do máximo sigilo, inclusive com sua intensificação conforme se aproxima a montagem das provas. Desse modo, os itens e as provas não obedecem a inclinações “ideológicas”, mas a um conjunto de normas visando a lisura do processo e sua adequação pedagógica.
A alteração desse processo, mesmo que por tentativa sem efeito prático, é um atentado à justiça e à democracia. Mas, se é possível agravar o quadro das denúncias, o pior seria a confirmação de tentativa de alteração de conteúdo dos itens quando já estavam no banco de itens.
Não menos grave seria a confirmação de alguns objetos de conhecimento desaparecerem das provas por desejo do governo de plantão. A política não está apartada do currículo do ensino médio, nem do Inep, tampouco do Enem; entretanto isso deve se dar por outros processos, por exemplo no debate sobre o novo [sic] ensino médio ou nas orientações sobre os critérios de inscrição para o exame. Certamente, nesses debates as polêmicas serão muitas e não podem ser encerradas por imposição de uma determinada visão.
O Enem, com seu conteúdo explicitado publicamente e com protocolos estabelecidos, não pode ser vitimado por “caprichos” de algumas autoridades.
Esse quadro transcende, a fortiori, as questões do Enem e coloca no horizonte ameaças de controle do trabalho docente em torno dos temas que não seriam permitidos, até mesmo quando eles aparecem em documentos oficiais. Nessa miríade de incertezas, salta aos olhos que o governo federal não se preocupou com a redução recorde de candidatos inscritos no Enem de 2021.
Parece que à exclusão de itens somou-se a exclusão dos candidatos com níveis socioeconômicos mais baixos, impossibilitados sequer de utilizarem suas notas em face das cotas, uma das políticas educacionais mais incisivas no escopo da desigualdade educacional brasileira.
Não se trata de negar a necessidade de aperfeiçoamentos no Enem, como seria o caso de divulgar as notas dos candidatos com os erros de medida. Trata-se de vislumbrar, em torno desse atual debate sobre o Enem, o comprometimento do processo seletivo dos que estão exercendo seu direito de sonhar, a ameaça a professores e estudantes de que há temas proibidos, interditando aspirações de futuro de amplas camadas sociais.
Confirmadas as denúncias de ingerência no Enem, estaremos diante de via de negação de direitos, contrária à justiça e à democracia.
Fonte: Folha de S. Paulo