*Por Dyogo Patriota, assessor jurídico da Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Abruc).
A apreciação das ações que discutem a proibição de requerimentos individuais de autorização de cursos de medicina e o respectivo aumento de vagas envolve a quantidade de profissionais médicos a serem formados, a qualidade da formação, a concorrência entre as instituições de ensino superior e a concentração de mercado
Na última década cresceu consideravelmente o número de brasileiros que acompanham o Poder Judiciário e os seus julgamentos, principalmente aqueles realizados pela Suprema Corte. Mesmo assim, como o STF analisa muitas ações todos os dias, nem todas alcançam um lugar de destaque na mídia e se tornam tema de debate popular. Por exemplo, há decisões muito famosas como a violação ao direito à vida em razão da pesquisa em células tronco embrionárias (ADI 3.510) e a declaração de constitucionalidade da Lei Maria da Penha (ADC 19), que foram realmente importantes para o país, mas há outras com o mesmo nível de relevância que não tiveram a visibilidade necessária como a definição de cotas públicas para a candidatura de Mulheres Negras (ADPF 738) e a validade da criação do Cadastro de Empregadores que tenham sido submetidos trabalhadores às condições análogas de escravos (ADPF 509).
A apreciação das ações que discutem a proibição de requerimentos individuais de autorização de cursos de medicina e o respectivo aumento de vagas (ADC 81 e ADI 7.187) pode não ter ganhado a notoriedade que merece, mas é um caso que deveria ser visto com lupa por toda nação porque envolve a quantidade de profissionais médicos a serem formados, a qualidade da formação, a concorrência entre as instituições de ensino superior e a concentração de mercado. E que se diga, esse não é um problema só do Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, já há dados estimativos sobre a possibilidade real daquele país sofrer com a escassez de 124 mil médicos até 2033. No Brasil, o novo edital do Programa Mais Médicos abriu vagas para contratação de mais de 5.970 desses profissionais, com ganhos iniciais de R$ 12.386,50, e permanece a descrença sobre a real ocupação dessas posições nos locais mais remotos, principalmente na região Norte.
A verdade é que questões complexas não aceitam soluções complacentes. É necessário decidir com base nos interesses nacionais, no bem comum e nas regras legais e constitucionais em vigor; e esse é o desafio que a Corte Constitucional enfrenta. As ações voltarão à pauta do plenário virtual entre os dias 9 e 20 de fevereiro de 2025, mas há muitas incertezas sobre tais causas, inclusive pelo procedimento adotado. Mesmo com a ocorrência de audiências públicas, foi adotado o procedimento de julgamento virtual e isso não é bom, pois a interação entre as partes, os advogados e os ministros entre si fica mais raro e prejudicado. Uma das justificativas para essa afirmação é que existindo contraposição das associações representativas que defendem grandes conglomerados empresariais educacionais ou big players educacionais de um lado e, de outro, associações que protegem as demais entidades de educação superior, o debate e as sustentações orais presenciais trariam muito mais elementos para os julgadores.
O assunto merece cuidados especiais a serem adotados pelo Poder Judiciário porque não se está apenas determinando os rumos dos cursos médicos no país, mas também o nível de concentração de mercado que se quer para o setor. O Brasil deu azo à criação de conglomerados empresariais educacionais com centenas de milhares de estudantes que são estranhos e inexistentes no resto do mundo. Esses big players educacionais, na maior parte das vezes, capturam alunos via políticas agressivas de preços, fragilização de currículos, impondo uma qualidade de ensino mais fragilizada, catapultando o ensino a distância como se tal forma de educação fosse a melhor para todos.
O papel a ser cumprido pelo STF não é fácil; será preciso coragem. O que está para ser decidido não pode se limitar apenas à inquirição da constitucionalidade de um dispositivo legal, mas a todo o poder que foi dado ao Ministério da Educação e ao exame de escolhas feitas pela administração pública, marcadas pelo aumento da concentração mercadológica, da precarização da relação de trabalho dos professores, da redução das pesquisas, e dando ensejo, ainda que não intencionalmente, à criação de monopólios regionais de cursos, ao aumento substancial de mensalidades e ao enfraquecimento do poder das universidades de excelência e dos estudantes. É um quadro delicado que impõe uma análise técnica da legislação, mas sem perder de vista o que se tornará o Setor de Educação Superior depois disso.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Imagem de Capa: Reprodução/Le Monde Diplomatique Brasil