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Quem dita as regras para novos cursos de Medicina no Brasil?

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Imagem: Pressfoto/Freepik

As relações sociais estão mudando com muita rapidez e agressividade, e o setor de educação superior tem vivenciado esse fenômeno, como não poderia deixar de ser. Os seus alunos são, na maior parte das vezes, pessoas que nasceram no século 21, voltadas a uma cultura de redes sociais, com métodos de estudos e trabalho remotos, além de acessos amplamente franqueados aos dispositivos eletrônicos à disposição no mercado. Essa, é claro, é uma faceta relevante, mas não a única ou mesmo a mais importante para compreensão das polêmicas que cercam as novas autorizações ou expansão de cursos de graduação em Medicina, principalmente quando se tem em conta que a lei do Programa Mais Médicos mudou a metodologia então conhecida, que partia do pressuposto da manifestação de vontade (pedido administrativo) pela faculdade, centro universitário ou universidade e, a partir de 2013, passou a exigir a realização de concorrência entre os interessados, mediante a publicação de um “edital de chamamento público”.

A inovação, sob um primeiro olhar, pode parecer encantadora, isonômica até, mas as instituições de ensino superior (IES), principalmente aquelas sem fins econômicos, sentiram-se prejudicadas por essa nova cultura. Não por causa da inovação legal em si, mas principalmente porque os editais anteriormente publicados estavam focados numa triagem econômico-financeira das concorrentes, tendo como parâmetro o modelo de sociedades anônimas, exigindo níveis de fluxo de caixa, geração de lucro e Ebitda que não são comuns às associações e fundações. Pode ser dito que a realidade mudou e o Ministério da Educação (MEC) quer fomentar outro modelo de IES? Sim, é possível. O que não é falado, entretanto, é que durante os últimos dois séculos a educação superior do Brasil foi efetivamente sem fins econômicos, e os serviços educacionais eram prestados por entidades estatizadas ou privadas.

A entrada, em massa, de empresas e “grandes conglomerados empresariais educacionais” no setor é algo muito recente, contando-se principalmente a partir da lei do Prouni (2005), que previu a possibilidade de conversão do modelo sem fins econômicos em empresas dos mais diversos tipos. Os “big players educacionais” sagraram-se como os maiores vencedores nas disputas por cursos médicos. Obviamente, poderia até ser dada a justificativa de que eles são melhores e merecem, portanto, serem mais beneficiados, mas são esses mesmos os que impuseram a lógica ao Brasil de cursos de R$ 99 e polos de educação a distância (EaD) de baixíssima qualidade, além da precarização da relação trabalhista e de ensino dos seus professores. Se eles não são melhores nas demais atividades e muitas vezes têm avaliações acadêmicas limitadas, com pontuação próxima do mínimo, por que então estão tão vocacionados para oferta do ensino de Medicina?

Aí é que está, não estão. Olhar para o passado é essencial para predizer o futuro, e quando se diz que a educação superior era essencialmente sem fins econômicos até o início do século 21, há diversas conclusões que podem ser obtidas, entre elas o problema de limitação de acesso à graduação. Tanto as IES públicas quanto as comunitárias (conceito que abarca as confessionais) são altamente preocupadas com a qualidade de ensino e de formação, tanto que em 2023 a PUC-RS foi considerada a melhor instituição não estatal (com o melhor curso de Medicina, inclusive), com outras universidades próximas da sua pontuação como a PUC-SP e a PUC-Rio. Outras entidades não empresariais estão entre as líderes desse ranking como a Unisinos e a Universidade Presbiteriana Mackenzie. O ideal é que houvesse também o rankeamento dos principais parques tecnológicos e das pesquisas de ponta em desenvolvimento de tecnologia aplicada, porque também nessa situação o mesmo perfil de IES estaria à frente. Contudo, a qualidade exige investimentos, e a limitação de auxílio estatal diminui o âmbito da oferta da educação, tanto que anteriormente às empresas educacionais massificadas os estudantes de graduação não alcançavam 5 milhões.

A pergunta que deve ser feita é sobre o poder público. O que ele quer para o setor? Sem demérito algum aos diversos trabalhos exercidos pelos brasileiros, é de se estranhar tantos engenheiros, por exemplo, recentemente formados e em subempregos. Muitos deles afirmam que mesmo formados não têm as habilidades necessárias para exercer a profissão. Essas grandes empresas de educação conseguiram ampliar a oferta da educação superior, porém os dados mostram um problema. Hoje, há um número próximo de 9 milhões de estudantes de graduação, e o PIB não cresce na curva de outros países que investiram fortemente na formação acadêmica de seu povo (como EUA e Coreia do Sul, por exemplo). As licenciaturas, que formam os professores, cresceram tanto que hoje o Brasil é o país que mais forma esse tipo de profissional entre os integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); no entanto, a avaliação de aprendizado piorou.

Se tudo o que foi colocado é verdade, não é de se espantar que tantas IES privadas e sem fins econômicos tenham buscado o Poder Judiciário para preservar seus direitos nos últimos dez anos, justamente porque as escolhas políticas feitas pelo Ministério da Educação na última década são estranhas, difíceis de compreender. Basta dizer que os pedidos desse segmento no que pertence aos cursos médicos eram muito simples, pois solicitavam que independentemente de editais de chamamento público as entidades pudessem requerer individual e administrativamente as autorizações e o aumento de vagas para cursos de Medicina, fazendo a prova de que cumpriam todos os requisitos para essa oferta, tanto os critérios acadêmicos quanto os de estrutura. A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em duas ações (ADC 81 e ADI 7.187), e o relator, ministro Gilmar Mendes, ao passo que levou a questão ao “plenário virtual” (sistema de julgamento eletrônico), concedeu liminar reconhecendo a constitucionalidade do edital, mas também puniu o MEC por sua inércia ao criar o que ficou conhecido como a “moratória dos cursos de Medicina” (Portaria MEC n.º 328/2018) e determinou que todos os processos administrativos individuais que houvessem passado da fase de pré-análise documental seguissem até o julgamento de mérito final.

Desde então, o que se vê é que o Ministério da Educação tem adotado uma conduta protelatória e não tem decidido esses pedidos administrativos. Inicialmente, alegou que estava construindo um “novo padrão decisório”, com o objetivo de cumprir integralmente as determinações da Corte Suprema; posteriormente, publicou a Portaria MEC n.º 397/2023, que, na prática, foi um subterfúgio para encerrar prematuramente a instrução e a tramitação dos pedidos. Após muita pressão social, política e jurídica, a administração pública recuou e decidiu publicar outra portaria (Portaria MEC n.º 421/2023) e, desde então, decidiu sobre um pedido de aumento de vagas tão somente. A questão é de fato séria, e não se sabe sequer a ordem cronológica desses requerimentos ou o motivo pelo qual o ente público analisa o requerimento de uma IES e não de outra.

É pertinente dizer que também é possível aduzir que há um edital ora em vigor e que o poder público quer priorizá-lo, contudo, qual o sentido de restringir novas vagas se compete ao MEC decidir criteriosamente cada um dos processos administrativos de curso ou de aumento de vagas, segundo os elementos dos autos? Por exemplo, se não há rede SUS a sustentar o internato, a autorização ou o aumento de vagas de curso de Medicina não é viável. O problema é que falta transparência, inclusive nos ditos editais. Por exemplo, não se sabe por qual motivo o Estado do Acre não teve a disponibilização em seu território de um curso sequer no edital de chamamento público, principalmente quando 13 foram reservados ao Estado de São Paulo (maior epicentro de concentração médica nacional). As críticas, portanto, mostram um estado de coisas que merece a atenção especial da sociedade, dos alunos, dos professores, do SUS, dos médicos e das instituições de saúde, porque o que está a ser decidido agora é algo que se projetará por diversas décadas no futuro.

Fonte: Estadão

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